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domingo, 15 de agosto de 2010

A injusta justiça

A. tinha 20 anos. Não gostava muito de estudar, portanto abandonou os estudos cedo, mas não passava os dias esparramada no sofá, como tantos colegas seus faziam. A. queria prover ao seu próprio sustento e também ajudar os seus pais, humildes comerciantes que tinham dedicado toda a sua vida à exploração de um pequeno minimercado em Benavente. A. conseguiu então um emprego na Câmara Municipal da sua terra natal. A. era tida como uma funcionária exemplar, sempre pontual e muito solícita a todos os que a ela acorriam. A. era muito extrovertida e simpática, o que levava a que possuísse muitos amigos. Um desses seus amigos veio a tornar-se seu namorado. Já falavam em casar-se e nos nomes que, um dia, iriam dar aos filhos que tivessem juntos. Quem os via, dizia que eram um casal muito feliz.

No dia 6 de Dezembro de 2000, quarta-feira, o seu namorado veio buscá-la a casa para irem espairecer um pouco, como era habitual todas as quartas-feiras. O carro entrou na estrada nacional n.º 118 (Benavente - Samora Correia). A conversa ia animada. Falavam acerca do fim-de-semana prolongado que iriam passar juntos, dado o feriado 8 de Dezembro calhar a uma sexta-feira. Subitamente, uma acácia, com cerca de 18 metros de altura, sita a 3 metros da estrada, cai sobre a viatura.

A. tem hoje 30 anos. É tetraplégica. Em consequência do acidente, A. tem apenas sensibilidade do pescoço para cima e nos ombros, sofre de diminuição acentuada da função respiratória e foi-lhe atribuída uma incapacidade funcional de 95%, com incapacidade total para o trabalho. Desloca-se em cadeira de rodas e necessita da assistência permanente de terceiros, o que obrigou os seus pais a fecharem o minimercado que exploravam para a poder acompanhar.
A. e os seus pais intentam uma acção no Tribunal Administrativo de Lisboa, reclamando uma indemnização/compensação à Estradas de Portugal por danos patrimoniais e morais, presentes e futuros. A acção é julgada procedente, sendo a EP condenada a pagar 1,2 milhões de euros a A. e 252,50 mil euros aos seus pais.

Não se conformando com a douta decisão, a Estradas de Portugal interpõe recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, questionando, por um lado, a sua responsabilidade nos factos e, por outro, a quantificação dos danos indemnizáveis. Os mandatários das EP pugnam a tese segundo a qual a árvore, embora colocada a 3 metros do limite da EN 118, se localizava já num terreno privado, contíguo à berma da estrada. E, por conseguinte, se presumia a culpa da dona do terreno onde a árvore se situava, devendo ser esta a responsável civil pelos danos provocados pela queda da acácia sobre a viatura. Porém, os Juízes Conselheiros defendem que este facto de per si não permite ilibar a EP, porquanto a árvore estaria há mais de 10 anos inclinada sobre a faixa de rodagem e constituía um perigo manifesto, sendo obrigação da entidade tutelar das estradas nacionais vigiar a perigosidade para a circulação rodoviária das árvores próximas das vias públicas. Todavia, chegados a este ponto de argumentação que em tudo nos parece válida e, assim, alicerçar a responsabilidade civil das EP, logo os juízes inexplicavelmente afirmam no acórdão que proferem que, "apesar do dever de vigilância, seria leviano pensar-se que a EP tem a obrigação de vigiar todas as árvores que, aos milhões, bordejam as estradas nacionais a partir de terrenos privados". Sustentam ainda que não há factos que indicam como provável a queda daquela árvore e que mostrem que a mesma configurava uma ameaça. Por isso, concluíram, "a EP não é responsável pelo sinistro". É desta forma que a EP fica totalmente ilibada do pagamento daquela indemnização, no valor de quase 1,4 milhões de euros.

Este acórdão é de uma crueldade chocante. Como é que, passados 10 anos que se adivinham de difíceis tormentos, uma jovem tetraplégica em virtude da supra citada queda de uma acácia, vê toda e qualquer hipótese de recebimento de uma indemnização pelos seus danos ser-lhe cerceada? E aqueles pais, que tamanhos sacrifícios fizeram para poderem prover aos cuidados básicos da sua filha, que tipo de ajuda lhes é concedida? Que mundo é o nosso que permite que tamanhas injustiças como estas ocorram? E se é leviano pensar-se que a EP tem a obrigação de vigiar todas as árvores que, aos milhões, bordejam as estradas nacionais, então digam-me, caríssimos Conselheiros, quais são as árvores que a EP deve vigiar? Se A. não fosse uma pobre rapariga natural de uma localidade interior e de parcos recursos económicos, será que a referida decisão possuiria o mesmo conteúdo? Todas as noites, quando estão prestes a adormecer, aqueles dois Juízes Conselheiros (dos três Juízes Conselheiros, só um é que votou o acórdão vencido), não sentirão o peso das suas consciências ao relembrar tal acórdão por eles subscrito? Se os tribunais existem como órgãos onde a justiça deve ser realizada, onde é que ela se encontra neste Supremo Tribunal Administrativo, instância máxima existente na jurisdição administrativa? De todas as vezes que aqueles Juízes contemplassem os seus filhos, deveriam lembrar-se de A. Porque A. não vai poder mais realizar o seu sonho de infãncia: ser mãe. Este facto é indelével. Mas a dignidade e a justiça de receber uma compensação por todo o seu sofrimento foram cruelmente reitradas a esta pobre jovem. São decisões estas que desacreditam a justiça e que nos fazem tantas vezes afirmar que esta se encontra mesmo nas ruas da amargura!

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