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terça-feira, 28 de junho de 2011

Aos mais esquecidos

É com algum espanto que observamos os moldes em que o debate intelectual se realiza nos nossos dias. Tomemos como exemplo a seguinte situação: a sacudidela governativa das forças de esquerda que, na óptica da direita, é a grande responsável pela desorganização europeia e pela desarmonia que se verifica entre centro e periferia na Europa. A simplicidade com que esta ideia vem sendo plantada triunfalmente entre a imprensa é assustadora e, no entanto, nada de mais falso. O leitor recorda-se da forma como começou esta crise? Pois bem, caro leitor: a crise que eclodiu em 2008 não começou como uma crise de dívida pública soberana; evoluiu, certamente, para o estádio que actualmente se lhe conhece. Mas os verdadeiros contornos foram bem diferentes: nessa altura, os fervorosos conservadores liberais que hoje tanto apregoam contra o Estado Social andavam com a viola metida no saco, confessando até alguma simpatia com a intervenção estadual que, recorde-se, salvou o sistema bancário da falência e que a economia mundial mergulhasse numa crise semelhante à vivida em 1929. E o leitor recorda-se da causa que desencadeou uma eminente falência do sistema bancário mundial? A desregulação, caro leitor! Alan Greenspan! Este nome ao leitor não deve agora ser familiar. Pois bem: em 2008, este senhor, ilustre representante da escola conservadora liberal dos Estados Unidos, era religiosamente venerado. O Sr. Greenspan, antigo Presidente da Reserva Federal dos EUA, fruto da filosofia em que acreditava, de que cada agente actuando por si mesmo, conduziria igualmente a um acautelamento dos interesses públicos e colectivos, caiu em desgraça em 2008. Os liberais conservadores ficaram órfãos. Mas eis que numa reviravolta surpreendente, três anos volvidos, eles estão mais fortes que nunca – orgulhosos, altivos, briosos.
Com efeito, depois da intervenção concertada dos Estados haver salvo o sistema bancário da falência, de os haver recapitalizado com dinheiro dos contribuintes, de haver evitado uma crise com os moldes da crise de 1929, mas não haver evitado a maior crise económica desde então, os conservadores liberais vêm acusar esse mesmo processo de haver salvo o Mundo da filosofia que eles mesmos advocam! De uma crise do sistema bancário passamos então para uma crise de dívida pública soberana.
Mas esta surge como consequência daquela. Naturalmente que os Estados estruturalmente sobreendividados como o português, foram a essa crise mais expostas, ou seja: outras causas agravaram-na. Mas foi uma filosofia liberal, crente na desregulação dos mercados, fiel a uma concepção extremista do interesse individual e egoística que nos conduziu à actual conjuntura. A crise de dívida pública apenas apareceu posteriormente e em resultado daquela e da sua filosofia. Não deixa, por isso, de parecer algo estranho, diria mesmo cínico, o modo feliz como alguns liberais olham o seu umbigo, vendo o declínio das forças de esquerda no Governo.
Isso não significará, certamente, que a esquerda se possa imobilizar no tempo. As profundas transformações que se vão verificando nos nossos tempos obrigam a uma constante adaptação de posições de modo a se harmonizar também com a realidade das eras – mas isso sem nunca esquecer os valores fundamentais do legado que nos é transmitido. E este sim, parece-me o principal defeito que pode ser apontado às forças de esquerda: é realisticamente e economicamente impossível permanecer agarrado a certos preconceitos ideológicos contra o mercado. Sem recair na deriva neoliberal, as forças de esquerda têm de encontrar o meio caminho entre a liberdade individual e as necessidades colectivas públicas e refundarem a sua ideologia.

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