A mais bela, a mais pura e a mais duradoura glória literária de prosa da blogosfera

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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Arrumações


Estava frio e chovia copiosamente. Qualquer ideia de uma retirada para o exterior estava fora de questão, por isso teria mesmo de se distrair por ali.
As caixas tão lustrosas e escrupulosamente arrumadas naquele canto empoeirado chamaram-lhe a atenção. Como seria possível estarem tão limpas e brilhantes sendo aquele o canto onde mais pó caía? Tacteando na penumbra tentou alcançá-las, mas a fraca luz fê-lo tropeçar numa qualquer bugiganga perdida pelo chão e a queda sobre as caixas como um peso morto foi inevitável. Levantando uma enorme nuvem de ácaros e provocando o maior alarido por todo o espaço percebeu finalmente que as tinha alcançado e iria perceber o que guardavam para estarem tão virgens.
Curioso remexeu sem saber bem no que tocava e mal percebia o que afinal eram aquelas matérias. A fraca luz não lhe facilitava a tarefa e, durante o tempo que distraído se deixava levar pela bisbilhotice, esquecera-se que o mais certo seria que o estrondo da queda a tivesse acordado. O som dos passos em direcção ao sótão, no entanto, não o impediu de continuar a agitar o conteúdo das caixas no ar, espalhando tudo por todo o lado e criando um caos irreversível.  
Quando finalmente ela ali chegou e se apercebeu da desarrumação que aquela intempestiva curiosidade tinha provocado viu as cores garridas da insuficiência dos seus esforços por manter tudo no lugar. Gritou e protestou porque ele já sabia que ela gostava de ter tudo organizado e, mexerem-lhe indevidamente nas coisas era uma das ofensas que levava mais a peito. Ralhou-lhe e chegou ao ponto de lhe lembrar que aquele excessivo controlo pela ordem das coisas fazia parte da influência do signo sob o qual nascera, portanto nem sequer se punha a hipótese de ser de outra maneira.
Tanto alarido baralhou-o e já não percebia mais se tinha realmente abusado desnecessariamente da confiança ou aquela reacção se prendia no facto de lhe poder descobrir algo que estaria escondido naquelas caixas. Mas também não quis saber. Se estavam arrumadas naquele buraco poeirento é porque as caixas já não guardavam nada de importante.

  

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