Estava frio e chovia copiosamente. Qualquer ideia de uma retirada para
o exterior estava fora de questão, por isso teria mesmo de se distrair por ali.
As caixas tão lustrosas e escrupulosamente arrumadas naquele canto
empoeirado chamaram-lhe a atenção. Como seria possível estarem tão limpas e
brilhantes sendo aquele o canto onde mais pó caía? Tacteando na penumbra tentou
alcançá-las, mas a fraca luz fê-lo tropeçar numa qualquer bugiganga perdida
pelo chão e a queda sobre as caixas como um peso morto foi inevitável. Levantando
uma enorme nuvem de ácaros e provocando o maior alarido por todo o espaço
percebeu finalmente que as tinha alcançado e iria perceber o que guardavam para
estarem tão virgens.
Curioso remexeu sem saber bem no que tocava e mal percebia o que
afinal eram aquelas matérias. A fraca luz não lhe facilitava a tarefa e, durante
o tempo que distraído se deixava levar pela bisbilhotice, esquecera-se que o
mais certo seria que o estrondo da queda a tivesse acordado. O som dos passos
em direcção ao sótão, no entanto, não o impediu de continuar a agitar o
conteúdo das caixas no ar, espalhando tudo por todo o lado e criando um caos
irreversível.
Quando finalmente ela ali chegou e se apercebeu da desarrumação que
aquela intempestiva curiosidade tinha provocado viu as cores garridas da
insuficiência dos seus esforços por manter tudo no lugar. Gritou e protestou
porque ele já sabia que ela gostava de ter tudo organizado e, mexerem-lhe
indevidamente nas coisas era uma das ofensas que levava mais a peito.
Ralhou-lhe e chegou ao ponto de lhe lembrar que aquele excessivo controlo pela
ordem das coisas fazia parte da influência do signo sob o qual nascera,
portanto nem sequer se punha a hipótese de ser de outra maneira.
Tanto alarido baralhou-o e já não percebia mais se tinha realmente
abusado desnecessariamente da confiança ou aquela reacção se prendia no facto
de lhe poder descobrir algo que estaria escondido naquelas caixas. Mas também
não quis saber. Se estavam arrumadas naquele buraco poeirento é porque as
caixas já não guardavam nada de importante.
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