“Aturdido, rindo, perguntei àquele feroz insatisfeito que prosa pois concebia ele, ideal e miraculosa, que merecesse ser escrita. E Fradique, emocionado (porque estas questões de forma desmanchavam a sua serenidade) balbuciou que queria como prosa alguma coisa de cristalino, de aveludado, de ondeante, de marmóreo, que só por si, plasticamente, realizasse uma absoluta beleza – e que expressionalmente, como verbo, também pudesse traduzir desde os mais fugidios tons de luz até aos mais subtis estados de alma.”
“- Enfim – exclamei – uma prosa como não pode haver!”
“- Não! – gritou Fradique – uma prosa como ainda não há!”
Estimado leitor, não deixa de ser curioso que estas linhas sejam produzidas pelo maior autor de prosa portuguesa de todos os tempos, aquele que melhor encarna quer a Beleza da Forma, quer o Génio da Ideia – Eça de Queiroz. E elas são o ponto de partida para o discorrer do nosso pensamento – a prosa ainda não descoberta por Fradique, ideário de Eça, é a nossa ver, encarada pelo próprio Eça. Mas desde esses tempos, quem encarna essa prosa cristalina, aveludada, ondeante, marmórea de que fala Fradique (ou Eça)?
Com efeito, quem aparece hoje como o legitimo herdeiro da intensidade do verbo, da plasticidade do substantivo, do brilho do adjectivo? E quando vemos em algum autor pulsar o relevo e a vida de cada um desses elementos é a Ideia que lhes falta de todo. E quando a Ideia vem, assim, cheia de luzes e claridades e Sóis é a forma que lhe falta. Quem conjuga, então, Ideia e Forma? Pois se sem a forma, a verdadeira Literatura, não se distingue de um mero livro de culinária. Mas os tempos são feitos de materialidade e o estômago delicia-se com a carne. Como dizia o mesmo autor das linhas acima transcritas, “ Come, ao cair da tarde, sem testemunhas impiedosas, quando sabe que os astros vêm longe, que as asas sonham com o vento, que os olhos das flores se fecham de sono.” E acrescenta, em seguida: “Depois, à noite, quando sai do alimento como de uma vitória, os olhares são gritos de luz, os cabelos plumas gloriosas, o peito arca de ideias: comeu!”. Dê-se pois a carne ao estômago e ao espírito para que ele se farte, para que ele inche, para que ele se torne obeso, gordo, mas com uma Alma vazia e despida de Ideias. Pois senão existe um prosador que não besunte o espírito que não de manteiga e depois lhe aplica o respectivo preparado (o livro), e o espírito, esfomeado, lá recebe a iguaria com gula e a devora sem mais questionar. Um escritor não é um cozinheiro, nem um cozinheiro é um escritor. Diremos, como Ramalho Ortigão disse que “todo o pretendido escritor que não tem dentro um sábio, um filósofo ou um artista, não é bem assim um escritor, é um escrevente, e isto ainda na hipótese de que tenha ortografia e boa letra. Faltando-lhe esses dois predicados nem escrevente é, é um esvaziador de tinteiros em prelos e de prelos em papel de impressão, o que verdadeiramente apenas se deve chamar um troca-tintas.”
Um escritor é um sábio, portanto. E um sábio é, em princípio, uma pessoa que possui conhecimentos vastos. Estes conhecimentos vastos não se reflectem apenas na história e, logo, no mero romance histórico; estes conhecimentos vastos não se reflectem apenas na filosofia e, logo, nas grandes indagações literárias sobre as mais profundas convicções do homem; e assim por diante.
Nós perguntamos então, como Ramalho Ortigão, questionava há uns anos atrás, onde está o escritor que se possa considerar o intérprete legítimo do gosto, das ideias, das convicções, dos sentimentos do público?
Nós decerto adoramos a Ideia, mas quanto mais a Forma que lhe encarna e matiza o Espírito. E assim descobrimos o poeta do mal, Baudelaire, com todas as suas aflições e dores de alma, e descobrimos as horas de ócio de Byron e o prazer do efémero feminino, e assim descobrimos ainda Florbela Espanca onde toda a grandeza da alma da mulher se abre, como uma rosa com os seus espinhos, dolorosa, sangrando, mas vermelha de sentimento.
Não vemos hoje alguém com o brilho de outros que viviam para além das friezas e das mundanidades humanas e que iam buscar na Literatura o consolo das dores da vida dos mortais. Alguém como Musset que da sua relação com George Sand forjou páginas cheias de fulgurações como “Confession d’un enfant du siècle”. Alguém como Baudelaire, em cuja linha nervosa e intensa pulsa e vive a inquietação entre Deus e Satã, entre Jeanne Duval e Madame Sabatier. Alguém como Byron que nos seios de âmbar das suas amantes encontrava a inspiração para os seus mais belos e autênticos versos. Alguém como Hemingway que nos braços de Agnes von Kurowsky encontrou as justificações do “Adeus às Armas”. Onde pára esse alguém? Esse alguém que vive longe das preocupações puritanas destas sociedades, que se distancie das banalidades e das frivolidades do mundo, e que vive com toda a emoção, o ardor, o calor do sentido da vida, sem os receios dessas almas gordas, mas afinal castas, para depois despargir nas suas páginas as mil cores da existência.
E depois, vimos a Ideia que atormentava as almas de Antero com as suas Odes Modernas e a sua ânsia de uma verdadeira Regeneração de Portugal, o mesmo de que padecia Pessoa na sua Mensagem sebastianista.
Actualmente, a alma torce, sofre, luta e, por fim, cede, rende, gangrenada ao vácuo.
Nós abandonávamo-nos à emoção onde os outros, positivistas e estreitos, não viam senão linhas e versos e rabiscos! Nós inclinávamo-nos, prostrados, a escutar o rebate que cada verso tinha na nossa alma tal era a sede e a vida nela palpava.
Ao contrário de outros, nós buscamos no livro a mais pura emoção. E procuramos na linha, a beleza que, mesmo afastada do valor do pensamento, derrama sobre nós a Perfeição da Palavra, recortada com requintes e os labores de um escultor. E se a essa Perfeição do Verbo, do Adjectivo e do Substantivo, se juntar o palpitar da Ideia, teremos então um Livro digno desse nome. Por isso, Eça de Queiroz está num espaço mais alto do que Camilo Castelo Branco – pois ele é a mais real Encarnação da Perfeição da Ideia e da Forma.
É isso que nós procuramos. Um novo Realismo. Mas em vão. Somente nos grandes clássicos o vemos.
“- Enfim – exclamei – uma prosa como não pode haver!”
“- Não! – gritou Fradique – uma prosa como ainda não há!”
Estimado leitor, não deixa de ser curioso que estas linhas sejam produzidas pelo maior autor de prosa portuguesa de todos os tempos, aquele que melhor encarna quer a Beleza da Forma, quer o Génio da Ideia – Eça de Queiroz. E elas são o ponto de partida para o discorrer do nosso pensamento – a prosa ainda não descoberta por Fradique, ideário de Eça, é a nossa ver, encarada pelo próprio Eça. Mas desde esses tempos, quem encarna essa prosa cristalina, aveludada, ondeante, marmórea de que fala Fradique (ou Eça)?
Com efeito, quem aparece hoje como o legitimo herdeiro da intensidade do verbo, da plasticidade do substantivo, do brilho do adjectivo? E quando vemos em algum autor pulsar o relevo e a vida de cada um desses elementos é a Ideia que lhes falta de todo. E quando a Ideia vem, assim, cheia de luzes e claridades e Sóis é a forma que lhe falta. Quem conjuga, então, Ideia e Forma? Pois se sem a forma, a verdadeira Literatura, não se distingue de um mero livro de culinária. Mas os tempos são feitos de materialidade e o estômago delicia-se com a carne. Como dizia o mesmo autor das linhas acima transcritas, “ Come, ao cair da tarde, sem testemunhas impiedosas, quando sabe que os astros vêm longe, que as asas sonham com o vento, que os olhos das flores se fecham de sono.” E acrescenta, em seguida: “Depois, à noite, quando sai do alimento como de uma vitória, os olhares são gritos de luz, os cabelos plumas gloriosas, o peito arca de ideias: comeu!”. Dê-se pois a carne ao estômago e ao espírito para que ele se farte, para que ele inche, para que ele se torne obeso, gordo, mas com uma Alma vazia e despida de Ideias. Pois senão existe um prosador que não besunte o espírito que não de manteiga e depois lhe aplica o respectivo preparado (o livro), e o espírito, esfomeado, lá recebe a iguaria com gula e a devora sem mais questionar. Um escritor não é um cozinheiro, nem um cozinheiro é um escritor. Diremos, como Ramalho Ortigão disse que “todo o pretendido escritor que não tem dentro um sábio, um filósofo ou um artista, não é bem assim um escritor, é um escrevente, e isto ainda na hipótese de que tenha ortografia e boa letra. Faltando-lhe esses dois predicados nem escrevente é, é um esvaziador de tinteiros em prelos e de prelos em papel de impressão, o que verdadeiramente apenas se deve chamar um troca-tintas.”
Um escritor é um sábio, portanto. E um sábio é, em princípio, uma pessoa que possui conhecimentos vastos. Estes conhecimentos vastos não se reflectem apenas na história e, logo, no mero romance histórico; estes conhecimentos vastos não se reflectem apenas na filosofia e, logo, nas grandes indagações literárias sobre as mais profundas convicções do homem; e assim por diante.
Nós perguntamos então, como Ramalho Ortigão, questionava há uns anos atrás, onde está o escritor que se possa considerar o intérprete legítimo do gosto, das ideias, das convicções, dos sentimentos do público?
Nós decerto adoramos a Ideia, mas quanto mais a Forma que lhe encarna e matiza o Espírito. E assim descobrimos o poeta do mal, Baudelaire, com todas as suas aflições e dores de alma, e descobrimos as horas de ócio de Byron e o prazer do efémero feminino, e assim descobrimos ainda Florbela Espanca onde toda a grandeza da alma da mulher se abre, como uma rosa com os seus espinhos, dolorosa, sangrando, mas vermelha de sentimento.
Não vemos hoje alguém com o brilho de outros que viviam para além das friezas e das mundanidades humanas e que iam buscar na Literatura o consolo das dores da vida dos mortais. Alguém como Musset que da sua relação com George Sand forjou páginas cheias de fulgurações como “Confession d’un enfant du siècle”. Alguém como Baudelaire, em cuja linha nervosa e intensa pulsa e vive a inquietação entre Deus e Satã, entre Jeanne Duval e Madame Sabatier. Alguém como Byron que nos seios de âmbar das suas amantes encontrava a inspiração para os seus mais belos e autênticos versos. Alguém como Hemingway que nos braços de Agnes von Kurowsky encontrou as justificações do “Adeus às Armas”. Onde pára esse alguém? Esse alguém que vive longe das preocupações puritanas destas sociedades, que se distancie das banalidades e das frivolidades do mundo, e que vive com toda a emoção, o ardor, o calor do sentido da vida, sem os receios dessas almas gordas, mas afinal castas, para depois despargir nas suas páginas as mil cores da existência.
E depois, vimos a Ideia que atormentava as almas de Antero com as suas Odes Modernas e a sua ânsia de uma verdadeira Regeneração de Portugal, o mesmo de que padecia Pessoa na sua Mensagem sebastianista.
Actualmente, a alma torce, sofre, luta e, por fim, cede, rende, gangrenada ao vácuo.
Nós abandonávamo-nos à emoção onde os outros, positivistas e estreitos, não viam senão linhas e versos e rabiscos! Nós inclinávamo-nos, prostrados, a escutar o rebate que cada verso tinha na nossa alma tal era a sede e a vida nela palpava.
Ao contrário de outros, nós buscamos no livro a mais pura emoção. E procuramos na linha, a beleza que, mesmo afastada do valor do pensamento, derrama sobre nós a Perfeição da Palavra, recortada com requintes e os labores de um escultor. E se a essa Perfeição do Verbo, do Adjectivo e do Substantivo, se juntar o palpitar da Ideia, teremos então um Livro digno desse nome. Por isso, Eça de Queiroz está num espaço mais alto do que Camilo Castelo Branco – pois ele é a mais real Encarnação da Perfeição da Ideia e da Forma.
É isso que nós procuramos. Um novo Realismo. Mas em vão. Somente nos grandes clássicos o vemos.
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