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terça-feira, 21 de setembro de 2010

Interrupção dos BRIC - Crónica

Interrompemos a nossa análise sobre os BRIC - que consistiria em 4 capítulos, dois já apresentados - para trazer ao leitor um texto de outrem.
Trata-se da crónica do Comendador Marques de Correia, publicada no passado sábado no Expresso (Revista Única n.º 1977, última página).
Fazemos tal atendendo a que o texto de debruça sobre uma temática bastante actual - a discussão acerca da viabilidade do nosso Estado Social - de uma forma bastante original.
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Ao Comendador os nossos parabéns, e se o leitor já leu no sábado leia agora na terça... Se não leu no sábado, leia agora duas vezes, se fizer o favor. Subscrevemos na íntegra a opinião transmitida...
Passamos a transcrever:
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" Imaginem um ser humano que tinha uma monstruosa dor de cabeça. Um médico receitou-lhe, há 40 anos, uns comprimidos. O medicamento era eficaz para a enxaqueca, mas a pessoa - tendo resolvido boa parte daquela dor abrasiva e pulsátil (seja lá o que isso for) - descobriu que lhe doía também um dente e tomou mais comprimidos. Foi ao passar-lhe a dor de dentes que tomou consciência de que tinha, igualmente, uma ligeira impressão dolorosa na perna esquerda, pelo que aumentou a dose. A dor de cotovelo levou-o a tomar mais e, daí em diante, não havia ligeira contrariedade que não atacasse com mais e mais comprimidos.
Claro que a despesa com os medicamentos se tornou bastante grande, o que causava ainda mais problemas àquela pessoa. O que ganhava no emprego já não chegava para pagar os comprimidos, pelo que tinha de se endividar na banca e pagar altos juros. No entanto, sempre que lhe sugeriam viver com menos pílulas, tomando só as absolutamente necessárias, alguém subia a um palco de comício e dizia: Querem matá-lo! Querem matá-lo! São desumanos os que o querem matar! Se ele se sente bem a tomar os comprimidos, ninguém lhos pode tirar!
No entanto, argumentavam outros, não há dinheiro para tanto comprimido... Não está ele todo endividado? Ainda que se sinta bem como vai pagar? Com dívida, responderam os outros! Endivida-se mais! E ele endividou-se mais. E mais. E mais. Todo o produto do seu trabalho ia para pagar a dívida contraída porque tinha de tomar cada vez mais comprimidos, já que à medida que mais os tomava, mais lhe doíam diversas partes do corpo. Os médicos diagnosticaram: havia comprimidos a mais; tinha de cortar no consumo! Porém, ao ouvir os médicos, logo alguém subiu para um palco de comício e clamou: Querem matá-lo! Querem matá-lo! Querem tirar-lhe os comprimidos, logo agora que tanta falta lhe fazem!
O povo, claro, gostou desta defesa acérrima dos comprimidos, porque é indecente retirar a medicação a alguém quando mais precisa. Porém, os médicos insistiam que a pessoa se sentia pior, justamente porque a medicação era excessiva.
Discute para aqui, discute para ali, não se chegou a qualquer conclusão. Um dia, o excessivo consumidor de comprimidos acordou e não tinha crédito, não tinha comprimidos, não tinha nada.
Julgam que na comunidade onde isto se passou alguém reirou uma conclusão da história? Ninguém! Uns diziam que se tinha chegado a este ponto porque havia overdose de comprimidos, mas os outros juravam que se não fosse a banca, os credores e os médicos - malandros que, falando na doença, a agravavam manifestamente -, tudo estaria bem.
A pessoa em causa anda por aí, ainda. Anda mal, aos tombos, mas anda... Chegou àquela fase em que a ameaça é brutal: se continua como até aqui morre, mas já não sabe como mudar de vida.
Entretanto vai tomando os comprimidos que pode. Também não é mais um que o há-de matar... Um dia, quando morrer, ninguém saberá do que foi e cada qual ficará com a sua opinião.
Neste aspe(c)to, resta-me dizer, caros leitores, é que esta pessoa é igualzinha ao Estado Social. Está a matar-se para que não a matem...
Comendador Marques de Correia"

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