A mais bela, a mais pura e a mais duradoura glória literária de prosa da blogosfera

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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O Processo Casa Pia

De um lado homens que, outrora em crianças foram abusadas sexualmente; do outro lado, homens sobre os quais recaem fortes suspeitas de terem realizado os abusos. É fácil prever de que lado estarão os corações. A Justiça, no entanto, não pode formar juízos a priori. Ela tem de aguardar pelos elementos carreados ao processo para formar o seu juízo de forma independente. E esse é o objectivo do julgamento – determinar, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade dos arguidos: por isso se diz que todos os factos relevantes para a decisão que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, também não possam ser considerados como provados – in dubio pro reo. A publicidade desta sentença tinha, sobretudo, um objectivo – demonstrar aos portugueses da culpabilidade dos arguidos. Este objectivo não foi alcançado. Pelo contrário, as dúvidas apenas se intensificaram. A não indicação dos factos que levaram à condenação apenas contribui para intensificar a neblina que rodeia todo o processo Casa Pia. Se ninguém duvida de que os abusos foram efectivamente cometidos, há já dúvidas sérias de que aqueles arguidos – ou alguns deles – foram verdadeiramente os abusadores. Esta era a missão do tribunal – demonstrar para além de qualquer dúvida razoável a culpabilidade dos arguidos. A demonstração da culpabilidade dos arguidos baseia-se em factos, em provas e não na indicação sumária da medida da pena.
A questão da súmula não serve de desculpa à ausência de fundamentação. Se a súmula é permitida pelo Código de Processo Penal e justificada à luz da extensão material do caso, nada justifica que os juízes não tenham especificado os fundamentos da condenação – precisamente a parte fundamental de todo o Acórdão.

A verdade é que os arguidos foram condenados, sendo-lhes indicada a medida da pena, mas não a discriminação dos motivos que levaram a essa mesma condenação. Negar ao arguido a possibilidade de conhecer os fundamentos que levaram à sua condenação não é aplicar justiça – é, na verdade, um non liquet, em que não pode ser permitido ao juiz, mesmo tratando-se de uma súmula, furtar-se aos fundamentos da decisão, condenando o arguido a uma pena privativa de liberdade, sem lhe dar a conhecer as razões na origem de tal decisão.
Argumentar que a fundamentação completa do Acórdão estará disponível no dia de hoje não procede – ninguém poderá dizer que não está ciente de que a aplicação da medida de pena, destituída de uma fundamentação que a acompanhe, tem reflexos na formação dos juízos da opinião pública. Um julgamento acompanhado ao segundo na televisão e em que no momento da divulgação das penas apenas se faz referências às mesmas, contribui-se para a formação de um julgamento sumário sobre a condenação dos arguidos. Sentenciar uma pessoa a pena de prisão sem que esta conheça os fundamentos da decisão e as provas que contribuíram para a formação desse juízo é denegar o Estado de Direito.
A Justiça é, com efeito, administrada em nome do povo. A protecção dos bens jurídicos é feita em nome da comunidade e é o restabelecimento da paz jurídica posta em causa pelo crime e a consequente reafirmação da validade da norma que se visa com o processo penal. Quando a Justiça está, porém, dependente de um caso para provar o seu funcionamento – algo vai mal. A Justiça deve-se revelar distante de ímpetos sanguinários, ela não pode ceder aos temperamentos ardentes, mas sim deter-se nas frias leis, factos e provas.

A publicidade do processo é importante para dissipar quaisquer desconfianças que possam surgir na comunidade e na opinião pública sobre a imparcialidade da justiça penal – e, por isso, o acompanhamento por parte de televisões, rádios e jornais do processo é salutar. Este acompanhamento deve, no entanto, seguir o objectivo pelo qual o princípio da publicidade existe: dissipar as desconfianças. Isto esteve longe de acontecer. Os jornalistas revelaram-se uns abutres; o seu desejo era saber coscuvilhar e não informar; toda a preocupação se volta para a conquista de audiências por parte da televisão e pelo jornal que pretende vender no dia seguinte; o objectivo de escrutínio público e de informação dos cidadãos que formam a comunidade estadual foi vandalizado à custa do espalhafato mediático.
A preocupação excessiva com os media foi clara. Houve maiores providências em proteger um círculo mediático do que assegurar o regular funcionamento da justiça. O não facultamento aos advogados dos arguidos de cópias da sentença é surreal. A preocupação clara com o privilégio da forma sobre a substância não contribui para a credibilização da Justiça portuguesa. E não será a condenação de 6 dos 7 arguidos do processo Casa Pia que irá lavar a face da Justiça portuguesa. Ela não se resume a um caso – todos os casos são igualmente importantes para a Justiça. A conclusão do processo Casa Pia em sede de primeira instância em nada resolve os seus problemas. A Justiça tem de assegurar o seu funcionamento como um todo e não pode estar dependente do mediatismo de determinados casos para provar a sua valia.

Figueiredo Dias indica dois fundamentos essências da política criminal nos dias de hoje. “Um primeiro aspecto que importa salientar é o que se prende com a celeridade do processo” em que “o efeito de prevenção geral do sistema penal não depende em quase nada de uma grande severidade das penas, mas depende em extremo grau da probabilidade da punição e do lapso de tempo dentro do qual ela venha a efectuar-se. Acresce, por outro lado, a probabilidade da justeza da decisão”. Eis então como o Acórdão da Primeira Instância falhou, seguramente, em pelo menos um dos aspectos – a celeridade – e não transmitiu a certeza necessária relativamente ao segundo – a justeza da decisão.

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