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sábado, 24 de julho de 2010

À Consideração constitucional da Direita - e do Dr. Henrique Monteiro

Ainda a propósito do debate da revisão constitucional, gostaríamos de nos pronunciar sobre a imbecilidade que vem invadindo os argumentos de alguma direita. Cara direita, quando nós não conhecemos profundamente um certo assunto que requer alguns conhecimentos mais técnicos, arriscamo-nos a passar por idiotas quando nos pronunciamos sobre eles. É o caso que vem sucedendo a V. Ex.ª, no domínio da argumentação sobre a gratuitidade do ensino e da saúde. Estimada direita, queira V. Ex.ª notar a pesarosa humilhação a que a vou submeter, ao receber uma doutrinação de um opinador independente, mas associado aos valores da esquerda moderada. Assim sendo, cara direita temos a comunicar-lhe o seguinte:

Uma das classificações de preceitos constitucionais diz respeito à distinção entre normas constitucionais preceptivas e normas constitucionais programáticas. As normas constitucionais preceptivas são de eficácia incondicionada ou não dependente de condições institucionais ou de facto. As normas preceptivas são, por isso, características do Estado Liberal e dizem respeito à natureza do Estado que lhes está subjacente. As normas preceptivas estão, assim, ligadas aos Direitos, Liberdades e Garantias. Classificação distinta, cara direita, - e atentai nisto – são as normas programáticas, aquelas, que dirigidas a certos fins e a transformações não só da ordem jurídica mas também das estruturas sociais ou da realidade constitucional, implicam uma concretização incindível dessa realidade. As normas programáticas são, por isso, características do Estado social e implicam condições económicas e sociais a criar pelo poder político – ou seja, necessitam da concretização de determinadas políticas governativas. Estimada direita, a gratuidade tendencial do serviço nacional de saúde e a gratuidade tendencial do sistema de ensino estão definidas nos artigos 64.º, n.º 2, alínea a) da CRP e no art. 74.º, n.º 2, alínea a) da CRP, respectivamente. Tanto o art. 64.º, como o art. 74.º estão incorporados no Título III da Constituição que diz o seguinte: “Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”. Ora, as normas programáticas dependem de factores económicos e sociais – que no que toca a Portugal não são lá muito famosos. O que queremos dizer, estimada direito, é que o art. 64.º e o art. 74.º estão dependentes das condições económicas e sociais do nosso País – por isso, enquanto que na saúde se pagam taxas moderadoras, no ensino se pagam propinas. Assim se fixa a gratuidade tendencial do sistema que está, no dependente, de condições económicas e sociais. É por isso que comunicamos a V. Ex.ª, a direita que afirma “ah! isso da gratuidade da saúde e do ensino é muito bonito mas são tretas…” – isso é simplesmente estúpido do ponto de vista constitucional. Neste contexto, cara direita, iremos prosseguir o nosso esforço de doutrinação de V. Ex.ª.

Como nota o Prof. Jorge Miranda no seu Manual de Direito Constitucional, Tomo II:
“Nas constituições liberais do século XIX, as normas substantivas eram quase todas normas orgânicas e as normas de fundo circunscreviam-se aos direitos, liberdades e garantias. Dominavam, portanto, as normas preceptivas.
Nas Constituições com intenções sociais, de diversas inspirações, dos séculos XX e XXI as normas de fundo, bem como as normas de garantia, dilatam-se muitíssimo e passam a prever direitos sociais e a organização económica. Deparam-se então, em largo número, normas programáticas”.
O que o PSD propõe, portanto, é um regresso ao século XIX: Ora, crendo nós que estamos no século XXI, e querendo o PSD regressar a uma constituição de base do século XIX, nós arriscaríamos – com grande prudência, no entanto – apelidar este processo de regressão. Porque, no nosso entender, uma vez que nos encontramos no século XXI, regressar ao século XIX seria um retrocesso. Porque dezanove é menor do que vinte e um. Estamos, porém, dispostos a ouvir opiniões que nos digam o contrário: que passar do século XXI para o século XIX é um avanço.

Esta crónica é especialmente dedicada a Sua Excelência, o Dr. Henrique Monteiro, director do Expresso, que esta semana, num debate da SIC-Notícias sobre a revisão constitucional, invocou o argumento acima indicado da gratuitidade da saúde e do ensino. Além do mais, Sua Excelência, na sua coluna de opinião no seu Expresso, vem culpar a Constituição pela insustentabilidade do Estado Social.
“Acresce que o Estado Social, que tanta gente se apressa a defender acriticamente, em toda a sua extensão, tem em si um problema: não é sustentável a prazo. Ouçam os economistas, todos eles, de Silva Lopes a Ernâni Lopes: sem cortes nas prestações sociais o país não aguenta.”
Tem razão, V. Ex.ª. Esclareça-me apenas uma coisa, meu caro Henrique Monteiro. Esse tal de Silva Lopes, é o mesmo economista que concedeu uma entrevista ao Suplemento de Economia do Expresso no dia 10 de Julho de 2010, que afirmou:
- Era preciso que olhássemos mais para o apoio aos desempregados, nomeadamente para os de longa duração. Há muita gente que se queixa de estar a fazer sacrifícios. Claro que estão. Mas quem está a fazer sacrifícios insuportáveis são os desempregados. E os desempregados de longa duração nem quero pensar. Nós, portugueses, se temos algum sentido de solidariedade social não devíamos dormir descansados enquanto tivermos este problema do desemprego de longa duração a aumentar.
Mais uma vez prudentemente, Dr. Henrique Monteiro, nós arriscaríamos dizer que leríamos nas palavras do citado economista “era preciso que olhássemos mais para o apoio aos desempregados” um apelo às prestações sociais. Prudentemente, sublinhamos mais uma vez.
Quando questionado o mesmo indivíduo sobre o maior potencial que o país não está a aproveitar, o suposto economista respondeu desta forma:
- É a população. O sistema de educação em Portugal é uma desgraça completa. É uma das maiores ameaças que temos ao futuro português.
Não observamos, Dr. Henrique Monteiro, referências à insustentabilidade do Estado Social. Observamos sim referências a uma gestão ineficiente do Estado Social. Se sua excelência acha, porém, que a solução do problema não passa por promover a competência do Estado na gestão do dinheiro público, mas sim por pôr término ao Estado Social, então não cite economistas que partilham da sua opinião, mas crie a sua própria opinião e fundamente-a com base em argumentos seus.

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