A mais bela, a mais pura e a mais duradoura glória literária de prosa da blogosfera

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sábado, 19 de junho de 2010

José Saramago

Uma vez sumida esta nossa existência física sobre a Terra, há sempre algo que fica – um nome. Uma vez sumida esta nossa existência física sobre a Terra, nem tudo é pó: uma obra permanece. Saramago deixou a sua obra: o seu Evangelho – provocação ateísta propositada. Deus é uma invenção do Homem – o Homem é Deus. O mesmo dizia o próprio Saramago: “o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu". O Homem constrói os Deuses e olvida a sua função essencial: viver – sentir. Ao contrário do que se apregoa, o Homem não é eterno: o Homem é temporal – ele vive sim, eternamente, pela sua obra; por aquilo que fez enquanto viveu: não por aquilo que, supostamente, lhe estará reservado nas brumas indecifráveis do futuro. Essa fraca metafísica pode servir de argumentação àqueles que nada procuram, nada desejam, nada esperam fazer nesta Terra – alongam o que não pode ser alongado (a Morte) e estreitam o que não pode estreitado (a Vida). O fim do Homem é ser Homem. E mais do que um sopro exterior que insufla de força a vontade humana, é do seu interior que nasce, que brota uma vontade indomável. Diriam que Saramago era um ímpio. Mas o próprio Antero, “esse génio que era um Santo”, nas palavras de Eça, afirmava – entre o Homem e o Santo, ele escolhia o Homem. Porque acima dessas revelações providenciais de um santo asceta e inerte no Céu, há um Homem na Terra que labuta, que age, que cria, que faz e que desfaz. Um é temporal, outro é eterno. Um é fugaz, o outro permanece. Da consolação do Céu não necessitam os verdadeiros Homens porque às suas aspirações, corresponde um trabalho incessante na Terra – a Obra. O escritor não necessita do Céu metafísico. O seu céu é o céu visível: matizado de azul na aurora, listrado de fogo no seu ocaso. Mas o escritor é aquele que do palmo de terra que todos pisamos se ergue, e alcança esse céu ao alcance de todos, mas que apenas alguns – aqueles recheados do Ideal – conseguem alcançar. É um voo que parte da terra, mas que expande o horizonte até o olhar se perder nas mil quimeras que voejam em torno duma única fantasia – o Ideal. Desse mesmo mal padeciam Florbela Espanca

Porque o meu Reino fica para além…
Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros clarões são todos meus!
Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!

E Goethe

Quem sagra a parte no rito universal,
E a faz vibrar em acordes imponentes?
Quem desenfreia a fúria das paixões?
Quem põe em fogo nas almas os poentes?
Quem esparge na Primavera os botões
De belas flores nas veredas dos amantes?
Quem faz de folhas sem significado
Coroas de glória, para o valor distinguir?
Quem garante o Olimpo, para os deuses unir?
O génio humano, no poeta revelado.

O próprio Cristo consta que era dotado de um certo Ideal, embora um Ideal mais metafísico. Porque deve ser o Ideal Metafísico o supremo Ideal e o Ideal dos Homens deve conservar-se submisso ao metafísico?
Uns homens procuram o Ideal com maior fervor do que outros; uns atingem esse mesmo Ideal, outros não; uns, ainda, atingem o Ideal com maior esplendor que outros.
Certa vez, Camilo disse: “Orgulho ou insaciabilidade do coração humano, seja o que for, no amor que nos dão é que nós graduamos o que valemos em nossa consciência”. Neste momento, poderemos não falar em amor propriamente dito, mas em reconhecimento. O El Mundo, o El País, o Le Monde, o Liberation, o The Guardian, o New York Times. Reconhecimento unânime equivale a valor imenso.

De serralheiro mecânico a Nobel da Literatura. Escapou ao bafo dogmático dos Mestres das Universidades, escutou o eco mais sincero que todos devemos escutar e que, muitas vezes, desprezamos – o eco do coração. Do livre impulso do coração recebeu a lição mais fecunda que podemos escutar, a vontade mais inexorável, o desejo mais supremo, a aspiração mais sublime. Colocou a pena sobre o coração e escreveu. Eis o mais puro e nobre sentimento que há. Em nenhum anfiteatro de faculdade nos ensinam lição mais imaculada e verdadeira do que esta. O ensino esquece a lição mais simples. O serralheiro mecânico, educado por ele mesmo entre os livros da biblioteca da escola industrial ensina o doutoral saber.

A morte tem esse efeito de iluminar o percurso brilhante do Homem, de doirar o caminho que por ele foi trilhado ao longo dos anos. E, no fim, resta apenas o Homem. E que grande Homem foi Saramago. Portugal desprezara-o como pária em nome do seu conservadorismo bacoco. Amordaça o escritor em plenos anos de democracia e liberdade. Trata-o como um enjeitado, com desprezo, com escárnio, com indiferença. Saramago, o pária, coloca Portugal no cume do Mundo: é Nobel. Que o País saiba pois, nesta hora, prestar a devida homenagem.

Noutra altura, disse que o escritor não deve nunca dobrar a cabeça perante ninguém sob pena de quando a reerguer, ela nunca mais se erguer à mesma altura. Mas curvar-se em sinal de respeito, admiração e estima nunca deve ser sinal de submissão, mas sim de reconhecimento ao grande escritor que elevou a Literatura Portuguesa a céus nunca antes conquistados e que, com isso, alargou o estreito fio de água para um rio bem mais largo, onde outros possam seguir o seu próprio caminho, mas nunca esquecendo quem lhes possibilitou a expansão do seu voo.

A José Saramago, o meu mais sentido e profundo agradecimento.

1 comentário:

Ahimsa (posts Maio-Julho 2010) disse...

Uma reflexão/homenagem sublime, à altura do nosso prémio Nobel. Muito bom!