Há certas coisas que não podem cair no esquecimento. Uma delas é este nome.
Trata-se do advogado que, a 28 de Setembro de 2009, faleceu, após ter sido alvejado na cabeça pelo ex-cônjuge de uma sua cliente. Todavia, este nome não era só de um advogado. Este era o nome de um pai, de um marido, de um amigo, de um colega que partiu sem motivo e absurdamente.
No passado dia 5 de Julho, no Juízo de Instância Criminal de Estarreja - Comarca do Baixo Vouga, decorreu a última sessão de julgamento de Manuel Pimenta, presumível homicida de Melo Ferreira. E é sobretudo acerca dos surpreendentes argumentos alegados pela defesa que nos propomos debruçar hoje. Mas antes, recordemos sumariamente os factos.
A 28 de Setembro de 2009, segunda-feira, pouco antes do meio-dia, Manuel Pimenta dirigiu-se ao escritório de Melo Ferreira, sito em Estarreja, para entregar uns documentos referentes à sua ex-mulher. O casal encontrava-se num processo judicial de partilha do património comum, subsequente ao divórcio, estimando-se que Pimenta deveria cerca de € 100.000, a título de tornas, à ex-mulher. Foi este facto que Melo Ferreira lhe terá relembrado naquela trágica manhã de segunda-feira, circunstância essa que desencadeou uma troca de palavras mais acesa entre os dois e que culminou no falecimento do advogado.
Nenhum motivo é fundamento para atentar contra a vida do ser humano, portanto, não podemos deixar incólume o agente que o faça nem deixar de apelidar tal acto como uma horrenda barbaridade.
Mas vejamos, então, qual a defesa sustentada por Pimenta. Este alega, vejam só, nada mais, nada menos que legítima defesa. Embora admitindo que poderá ter havido um excesso de legítima defesa e, por isso, requerer a justeza da aplicação de uma pena reduzida, o que é facto é que Manuel Pimenta desconstrói a tese de homicídio qualificado (art. 132º do Código Penal, n.º 1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos; 2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, a circunstância do agente: l) Praticar o facto contra advogado, no exercício das suas funções ou por causa delas), sustentada pela acusação e pelo Ministério Público. E fá-lo, incredulamente, somente na última sessão de julgamento.
O alegado homicida relatou que o advogado lhe pedira € 100.000 para terminar o processo com a sua ex-mulher e que, perante a recusa sistemática deste em entregar a quantia, Melo Ferreira, ter-se-á exaltado, indo à sua pasta e retirando um objecto que Pimenta identificara como se tratando de uma arma. Mas a história, contada pela primeira pessoa do arguido, não fica aqui. Este ainda chega a referir que foi no decurso do confronto físico entre os dois que foram disparados dois tiros: um para a janela e outro que terá atingido o advogado acidentalmente (?). E ainda garante ter fugido e levado a arma consigo, com medo que alguém lhe desse um tiro, pasme-se. Confrontado pelo tribunal colectivo com as declarações prestadas perante o Juiz de Instrução Criminal, que lhe decretou prisão preventiva, Pimenta asseverou que só assumira a culpa do homicídio por medo de ser agredido pelos agentes da Polícia Judiciária, como já acontecera por diversas vezes noutras situações conhecidas do grande público.
Por mais que a defesa tente narrar uma história que seja passível de redundar numa condenação em pena de prisão, no mínimo legal abstractamente aplicável, o bonus pater familias (homem médio, racional, consciencioso) logo verifica que muitas lacunas se erguem perante tamanha (des)construção dos factos. E muitas questões são deixadas sem resposta: se Melo Ferreira era descrito, entre os seus colegas de profissão e pelos familiares mais próximos, como sendo uma pessoa muito pacífica, de grande rectidão e pacatez e com padrões de comportamento da mais elevada das éticas, como é que, por causa de € 100.000 devidos a uma sua cliente, teria sofrido uma súbita alteração dos seus traços de personalidade mais vincados? Como é susceptível de ser provado o relatado por Pimenta na sua defesa se só ele e o advogado se encontravam no escritório do segundo? Como é que alguém que alega mentir por ter medo dos males eventualmente causados pelos agentes da PJ, não demonstra o mesmo receio ao atirar desalmadamente contra um ser humano, pai de dois jovens, pessoa respeitada e acarinhada por todos que com ele privavam? Como?
Sendo eu uma jovem no mundo da advocacia e tendo vivido um pouco de perto, dadas as minhas circunstâncias pessoais e profissionais, toda esta história, posso dizer-vos que ainda hoje se sente a tristeza entre os colegas, bem como o medo face à crescente insegurança sentida no mundo jurídico. O advogado não tem direito a protecção policial nem, e falando na grande maioria dos casos, recursos financeiros para poder ter um segurança pessoal, encontrando-se somente protegido de Pimentas pela porta do seu escritório. E é no actual clima de insegurança e de receio que muitas vozes se levantam, questionando onde é que reside o outrora devido respeito por tão digna profissão. Quando é que as pessoas vão finalmente entender que o advogado é apenas o representante dos legítimos interesses do cliente e que não é (ou, pelo menos, não deve ser) movido por circunstâncias pessoais na defesa do seu cliente? Quando é que o advogado vai poder voltar a sentir-se minimamente seguro no seu local de trabalho?
Quando, em sede de alegações finais, o advogado pede justiça, nem sempre se lembra que a justiça, a temporal, tem os olhos vendados e que isso se reflecte, por vezes, em muitas das sentenças e acórdãos proferidos pelos nossos tribunais. Mas nunca nos esqueçamos que a divina, pelo contrário, essa tem sempre os olhos bem abertos. Sempre.
O Ministério Público pediu uma pena de prisão de 18 anos para Manuel Pimenta. A leitura da sentença está agendada para a próxima sexta-feira, dia 23 de Julho, pelas 14h.
Na sala da Concelhia da Ordem dos Advogados de Estarreja,foi colocada uma placa em homenagem a Melo Ferreira com a seguinte inscrição: Ao advogado justo e forte, não o abalam as paixões dos malevolentes nem o rosto do minaz tirano, nem o aterram as insídias dos violentos (da obra O Perfeito Advogado, de Jerónimo da Silva Araújo). Que assim seja. Mas o vazio, esse, permanece.
3 comentários:
Infelizmente, por vezes os advogados têm de (ou querem) vestir a pele do diabo. E quando o fazem, submergem num mundo em que a ideia de justiça se molda aos interesses de cada um. Falta saber se a consciência acredita no que as suas palavras dizem. Ainda que não seja suficiente, não lhes invejo as noites mal dormidas.
Cara Sr.ª Dr.ª Letícia,
De facto, a Sr.ª Dr.ª Letícia termina o seu loquaz ensaio com uma verdade com a qual eu concordo... E que diz respeito à eficácia da Justiça... Divina!
Sim, dessa ninguém escapa...
Compreende-se a sua paixão pela sua corporação. Na qualidade de bonus pater familias - figura a que aliás a Sr.ª Dr.ª Letícia faz referência – e salvaguardando acima de tudo o devido respeito pelo falecido, ainda assim em jeito de conclusão, bem que poderia aduzir que todo e qualquer rebanho tem ovelhas negras, facto que igualmente, não legitima qualquer atentado à vida contra quem quer que seja.
Poderia citar-lhe um caso pessoal e poderia ainda citar-lhe uma miríade de casos que no fim de contas nos tocam a nós todos enquanto sociedade para lhe demonstrar que em toda e qualquer actividade existe o bom e o mau, o solidário e o traiçoeiro, o justo e o prevaricador e que por via disto, deveremos ter quiçá – citando um colega seu com quem de resto cortei relações - uma visão menos apaixonada de alguns factos (não me reportando evidentemente a este em apreço).
Dir-lhe-ia também algo que é uma verdade de La Palisse mas que nem sempre é tida em conta... A Justiça Terrena e que é praticada nos Tribunais e em que intervém os Advogados não circula na mesma via da Justiça Divina e não são de somenos os casos em que a Justiça Terrena de tão injusta que é na prática, acaba por ser uma espécie de boomerang que é devolvido a quem o arremessa. Esta é a minha convicção e nela deposito esperança de um dia ver feita justiça num processo insidioso em que fui desgraçado em toda a linha e com requinte de velhaquice, que se assemelhou um massacre, facto que conforme a Sr.ª Dr.ª Letícia sabe, nem na guerra armada convencional – onde não obstante se tratar de uma questão de conflito, existe um mínimo de regras estabelecidas – tal é permitido, sendo que na mesma dita guerra armada convencional o vencedor costuma ser magnânimo para com o vencido.
Passar bem...
Ambos os comentários são paleio gratuito
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