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quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O Sistema do Compadrio

«A sociedade portuguesa neste derradeiro quarteirão do século pode em rigor definir-se do seguinte modo: ajuntamento fortuito de quatro milhões de egoísmos explorando-se mutuamente e aborrecendo-se em comum». Assim o diz Ramalho Ortigão, nas Farpas de 1882. Desde então, e mais de um século passado, que mudou nesta definição da sociedade portuguesa do último quarto do século XIX? Nada – apenas o número da população; não somos quatro: somos dez milhões de egoísmos explorando-se mutuamente e aborrecendo-se em comum. Como se explora mutuamente toda esta gente? A resposta é simples: através do Estado. Não sendo o Estado mais do que a representação colectiva de cada um dos seus membros individualmente considerados – todos vivem, pois, à custa uns dos outros. E uma vez que o Estado, alegadamente, representa o bem comum, eis como chegamos a esta situação de exploração mútua. O leitor tem visto o bem comum? Nós vimo-lo, recentemente: arrastava-se na sarjeta ébrio, esfarrapado, miserável, pútrido, infecto. Aqueles que melhor vivem, são aqueles que melhor exploram os outros na sociedade portuguesa, é quem melhor se aproveita de outrem. Esta não é uma máxima marxista de opressão do povo pelos capitalistas – é a máxima da sociedade portuguesa baseada no sistema do compadrio. Com efeito, o principal modo de opressão em Portugal desde a Revolução dos Cravos da classe Povo pelas classes superiores tem sido operado pelo fecundo exemplo do Governo através do sistema compadrio, vulgo cunha.
O leitor quer saber o que separa Portugal do resto da Europa? É só uma palavra e, no entanto, uma palavra terrivelmente fatal, de consequências terrivelmente nefastas – o compadrio. Este sistema cujas consequências funestas tendem a estender-se a todo o Portugal tem corrompido inexoravelmente, inevitavelmente, terminantemente, a sociedade portuguesa. No Estado não se premeia o valor, premeia-se o compadre; no Estado não se premia a dignidade, premeia-se o desperdício; no Estado não se premeia o mérito, premeia-se a inépcia; no Estado não se premeia o trabalhador, premia-se o parasita; no Estado não se premeia a sabedoria, premeia-se o colega de partido. De cada vez que o Estado diz «Tu que trabalhaste, tu que pelejaste, tu que és digno, honesto, verdadeiro, honrado não tens lugar no Estado e no teu lugar escolho o meu compadre que é preguiçoso, que é lorpa, que é um inútil, que é um imbecil, mas que é o meu compadre», o Estado corrompe o individuo. O indivíduo tem então duas soluções: ou é corrompido ou sai de Portugal. De cada vez que o Estado substitui o trabalho, o valor, a honestidade, a dignidade, a coragem pela preguiça, pela ignorância, pela imbecilidade, pela falsidade – isso representa um golpe fatal no Bem Comum. Tudo isto tem sérias consequências nos costumes, na economia, na moral, na política, na sociedade, na indústria, no comércio, nas finanças. Cada vez que o Estado opta pelo sistema do compadrio ele estabelece a ineficiência do Governo Público e incita os indivíduos que o compõem ao egoísmo, à mentira, à lisonja, à desonestidade. É nesta altura que o sistema de exploração mútua praticado pelo Governo é também praticado pelo Povo – e aí temos Portugal em todo o seu esplendor: dez milhões explorando-se mutuamente. De cada vez que um indivíduo forte e capaz é substituído por um indivíduo frouxo e linfático, o erário público paga. Quando esse indivíduo amarelinho e molezinho for chamado a tomar decisões, a sua estupidez e os seus erros serão pagos com o dinheiro dos contribuintes. Estes indivíduos amarelinhos e molezinhos, sem opiniões próprias, sem independência, são recompensados pelo engraxamento de sapatos dentro da política – pelos serviços prestados são então chamados às empresas públicas, aos institutos públicos, a uma qualquer secretaria, a uma qualquer Câmara, a um qualquer lugar onde o Estado tenha responsabilidades. Pode acontecer também que o compadre tem algum familiar, algum conhecido, algum amigo infiltrado no sistema do compadrio. Ora, estes indivíduos, por serem os imbecis que são, vão causar danos ao Bem Comum. Isto normalmente representaria um problema na Europa – mas não em Portugal. Em Portugal olha-se para quem causou os danos ao Bem Comum, e se foi o amigo, o compadre, dá-se uma palmada no ombro e diz-se:
- Bom trabalho! Não te preocupes! O camelo do povo paga!
Pois bem: o povo foi pagando até agora; depois do povo já não poder pagar, o crédito pagou; agora mesmo, nem um, nem outro podem pagar e estamos mesmo na penúria, de algibeira vazia; já nem trocos nela tilintam. Isto não se deve à falência de um modelo de Estado Social – embora urja reformulá-lo. Isto deve-se a 23 anos de esbanjamento de integração europeia em que a torneira do dinheiro jorrado sobre este pedaço de terra foi fatalmente desperdiçada pelo sistema do compadrio.

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