A reflexão que trago hoje é inspirada nesse tema complexo que é a religião. No entanto, como apaixonada incurável pelas ciências sociais e humanas, o aspecto sobre o qual me debruço não se prende com os aspectos já debatidos neste blog a propósito da religião, mas sim com os limites que toda e qualquer religião deve ter na sua aplicação prática, para que haja manutenção da integridade de cada um de nós.
Ora, como refere a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 18º “Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”. E, logo de seguida, é acrescentado pelo artigo 19º que “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”.
Falo disto porque, como se sabe, há actualmente um debate sobre a abolição do véu islâmico em alguns países europeus, nomeadamente na França e na Bélgica. Por isso, gostaria de convidar o leitor a visualizar um vídeo breve da Euronews, cujo título é “Véu Islâmico e identidade europeia” e onde são condensadas diferentes perspectivas, mas igualmente interessantíssimas. Como se vê, a discórdia é imensa e torna-se difícil dizer, com exactidão, até que ponto algumas destas mulheres estarão a ser vítimas de fanatismo religioso imposto ou estarão apenas a levar um estilo de vida religioso, escolhido de forma livre e com base nas suas mais profundas convicções. Por este motivo, sou contra o uso de véu pelas crianças nas escolas, visto que ainda não estão com um desenvolvimento suficiente (em termos de maturação cerebral e psicológica) para decidirem, de forma informada e independente, o caminho espiritual com que se identificam mais; mas sou a favor da liberdade do uso de véu por mulheres adultas e independentes. De facto, se houver crença religiosa por parte da própria mulher, ela for adulta e levar a cabo uma vida independente (tendo profissão, casa própria, etc.) como sucede com muitas das mulheres que usam o véu, penso que todos devemos respeitá-las, pois elas têm o direito de escolher a sua religião e, como referi através da Declaração Universal dos Direitos Humanos, têm também o direito de expressar as sua religião (neste caso através do vestuário) em público. Por isso, aqui digo algo semelhante ao que disse no meu post acerca da eutanásia: se não gosta do Islão (e eu, pessoalmente, não aprecio, embora respeite) não use véu (eu também não o uso, ao mesmo tempo que respeito e aceito incondicionalmente quem o usa).
Um aspecto muito interessante comentado no vídeo prende-se com o que Nadia Fadil (socióloga) disse, e com o qual concordo plenamente, acerca dos infelizes “desvios a que se assiste neste debate: fala-se do véu integral para falar em seguida do lenço na cabeça e depois dos muçulmanos e, neste caso, as fronteiras com os discursos islamofóbicos diluem-se”. Com efeito, recusar que uma mulher se vista de acordo com aquilo em que acredita não é mais do que uma persistência da discriminação das minorias emigrantes nas sociedades da Europa ocidental onde, supostamente, existem normas democráticas e de tolerância.
Outro momento do vídeo que cativou a minha atenção foi o da entrevista à primeira deputada na Europa a usar o véu islâmico, eleita em 2009 e com apenas 26 anos. Ela afirma que o véu não é um travão à sua emancipação e assume-se como feminista (lutadora pela igualdade de direitos entre os sexos), pretendendo um Islão Europeu adequado aos dias de hoje. Por estas razões, só posso dar os parabéns a Mahinur Ozdemir pela sua coragem, inteligência e sensatez, capacidades essas que lhe permitem manter-se fiel às suas crenças sem, no entanto, impô-las nem pôr em causa a igualdade da mulher, pois demonstra ter a assertividade necessária para filtrar adequadamente a sua religião no momento de aplicá-la à vida real.
No entanto, ainda há muitas pessoas incapazes de filtrar a religião, por forma a vivê-la de forma realista e respeitando a integridade dos outros indivíduos. E, por isso, sou contra a imposição da religião em crianças, pois estas não são ainda capazes de consentir em consciência plena com os dogmas religiosos. Em termos objectivos, considero totalmente indefensável obrigar crianças a levarem o véu islâmico para a escola, a circuncisão masculina em bebés, assim como a feminina (mais conhecida por mutilação genital) e sou ainda contra situações vergonhosas como esta: uma criança de 12 anos morreu três dias depois de ter casado com um homem com mais do dobro da sua idade, devido a hemorragias internas decorrentes das relações sexuais a que foi sujeita e, para as quais, o seu corpo ainda não se encontrava suficientemente desenvolvido, como é óbvio. Isto está errado a diversos níveis e nenhum dogma religioso deveria permitir estes ataques à integridade do ser humano.
Gostaria de terminar partilhando a minha visão sobre a religião. Hoje, encaro-a apenas uma espécie de rasto que ficou da verdadeira espiritualidade. Todos os grandes pilares humanos da religião são seres dotados de grande sabedoria: Buddha (inspirador do budismo), Jesus (Cristianismo), Lao Tsé (Taoísmo) e, mais recentemente, por exemplo Gandhi. Todos eles passavam uma mensagem muito simples, mas muito verdadeira, a mensagem do amor. Todos os grandes filósofos espirituais transmitiram a importância de viver sem crueldade, respeitando, aceitando e partilhando o nosso afecto com todos os seres, amar e ser amado, sem contrapartidas, sem segundas intenções. Apenas isto, amar e respeitar genuinamente! Contudo, têm sido adicionados ao longo do tempo (por outros seres humanos que não compreendem verdadeiramente a profundidade dessas mensagens simples e as interpretam de forma incorrecta e interesseira) outras mensagens, as quais se transformam em dogmas (criando religiões) e cujo propósito já não é a espiritualidade em si, mas sim uma espiritualidade frequentemente corrompida por outros interesses ligados ao poder e à política.
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