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sexta-feira, 28 de maio de 2010

O Especismo

Se o estimado leitor já estudou a fundo esta forma de preconceito, provavelmente será vegeteriano/vegano e não precisará de ler o post; se ouviu falar apenas por alto ou o desconhece, convido-o a tomar este post como uma introdução ao tema, base de uma futura pesquisa (pois é totalmente impossível abordá-lo na sua plenitude num só post).

Ora o especismo é uma das mais antigas formas de discriminação e baseia-se num preconceito contra a ideia de levar os interesses dos animais a sério, um preconceito tão cruel como aquele que levou os esclavagistas brancos a não considerar com a devida seriedade os interesses dos seus escravos negros.

Jeremy Bentham, esse inspirador jurista, filósofo e reformista social do século XVIII, foi um dos primeiros (senão o primeiro) a defender explicitamente os direitos dos animais e, em 1789, Benthan escreveu o seguinte: “The day has been, I grieve to say in many places it is not yet past, in which the greater part of the species, under the denomination of slaves, have been treated by the law exactly upon the same footing, as, in England for example, the inferior races of animals are still. The day may come when the rest of the animal creation may acquire those rights which never could have been witholden from them but by the hand of tyranny. The French have already discovered that the blackness of the skin is no reason a human being should be abandoned without redress to the caprice of a tormentor. It may one day come to be recognised that the number of the legs, the villosity of the skin, or the termination of the os sacrum are reasons equally insufficient for abandoning a sensitive being to the same fate. What else is it that should trace the insuperable line? Is it the faculty of reason or perhaps the faculty of discourse? But a full-grown horse or dog, is beyond comparison a more rational, as well as a more conversable animal, than an infant of a day or a week or even a month, old. But suppose the case were otherwise, what would it avail? The question is not, Can they reason? nor, Can they talk? but, Can they suffer?”

Com efeito, se um ser sofre, não pode haver justificação moral para a recusa de tomar esse sofrimento em consideração; ao contrário de uma pedra ou uma planta que não são capazes de sofrer nem de sentir satisfação nem felicidade. À semelhança dos racistas, que violam o princípio da igualdade atribuindo maior peso aos interesses de membros da sua própria raça quando há um confronto entre os seus interesses e os de outra raça, também os especistas atribuem maior peso aos interesses dos membros da sua própria espécie em detrimento dos interesses das outras espécies.

Para concretizar um pouco, pensemos nas experiências que implicam tortura, isolamento e, finalmente, morte (ou seja, a generalidade das experiências científicas que testam cosméticos, produtos limpeza e outras coisas, que já todos estamos cansados de saber que não são para comer nem para injectar dentro dos olhos, mas que os experimentadores insistem em ver no que dá – saiba o leitor que uso cremes, champô, maquiagem, ..., que compro numa empresa que não testa em animais e nunca tive efeitos adversos). A maioria de nós aceita o facto de um homem poder sofrer mais que o animal, na medida em que consegue antecipar o facto de vir a ser morto e essa capacidade de antecipação transforma-se em angústia psicológica, que poderá inclusive aumentar a percepção da dor física. No entanto, repare o leitor que os animais não humanos e os deficientes intelectuais profundos estão na mesma categoria; e, se usarmos estes argumentos para justificar experiências em animais não humanos, temos de perguntar a nós próprios se também estamos preparados para permitir experiências em deficientes intelectuais profundos. Acredito que dirão que não (eu também diria que não, mas digo-o para ambas situações – sejam animais humanos ou não humanos – salvo excepções extremamente pontuais que implicariam outro post). Mas se o leitor disser que não aceita para os humanos com atraso cognitivo severo e irreversível (eventualmente institucionalizados, sem família que sofresse a sua partida), mas que o aceita se se tratar de um animal não humano então comporta-se como um especista, pois estará a fazer uma distinção que moralmente/eticamente não é fundamentada, sendo a única justificação uma preferência que favorece o membro da sua espécie, discriminando o membro da outra espécie.

A ideia geral que pretendo transmitir é a de que o sofrimento é sempre negativo e importa procurar minimizá-lo, porque um ser senciente sente sempre, independentemente da raça, sexo ou espécie. Tal como é referido por Peter Singer, bioético, filósofo e professor da Universidade de Princeton,“todos os argumentos para provar a superioridade humana não conseguem desmentir este facto: no sofrimento, os animais são iguais a nós”. Até Charles Darwin, o incontornável naturalista e cientista britânico, havia constatado que "Não há diferenças fundamentais entre o homem e os animais nas suas faculdades mentais (...) os animais, como os homens, demonstram sentir prazer, dor, felicidade e sofrimento."

Existe uma diferença enorme entre querer e necessitar. As pessoas não necessitam de comer carne, elas querem comê-la, porque são mimadas até ao ponto de não serem capazes de abdicar do prazer que as suas papilas gustativas lhes transmitem enquanto comem um bife (desafortunadas pessoas, essas que não conhecem as delícias da cozinha vegetariana), mesmo sabendo que o seu bife vem de um animal capaz de sentir medo e dor e que, provavelmente, viveu miseravelmente enclausurado, fora do seu habitat natural, antes de prosseguir para o matadouro. Se as pessoas não conseguem perceber a diferença entre precisar e querer, provavelmente são intelectualmente inaptas. Se não querem ver a diferença, então provavelmente são hipócritas. Se vêem a diferença e são incapazes de fazer a mudança então são egoístas, na medida em que conhecem os factos, mas simplesmente não se preocupam o suficiente para alterar o seu estilo de vida (sendo que algumas pessoas chegam ao ponto de manifestar ignorância de forma intencional e, sinceramente, prefiro isto a manifestarem que simplesmente não querem saber, porque quando manifestam intencionalmente uma falsa ignorância é porque têm, apesar de tudo, alguma consciência sobre a questão, faltando-lhes a força de vontade).

Não é certamente novidade que todos os animais (humanos e não humanos) possuem o seu próprio mundo de experiências subjectivas, independentemente do seu grau de complexidade, e pôr termo a esse conjunto único de experiências inerentes a cada ser senciente é egoísta e injustificado. Quando um homem olha para os animais não humanos como se fossem objectos, que apenas valem enquanto refeição ou casaco de cabedal, então esse homem não tem em si espaço para muito mais do que os seus próprios caprichos.

Embora eu tenha plena consciência de que a crueldade humana só terá fim quando a espécie humana se extinguir, mantenho a esperança de que a justiça e a ética venham sobrepor a conveniência, pelo menos na parte maioritária da sociedade. A luta contra os preconceitos e a discriminação é um trabalho em contínua construção e, já em 1854, Henry David Thoreau, numa das suas obras - Walden - dizia "I have no doubt that it is a part of the destiny of the human race, in its gradual improvement, to leave off eating animals, as surely as the savage tribes have left off eating each other....".

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