A mais bela, a mais pura e a mais duradoura glória literária de prosa da blogosfera

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sábado, 10 de abril de 2010

Fausto

Goethe, no Prólogo do seu Fausto, principia desta forma, por intermédio do Director: “Quem quiser atingir a sua meta tem de servir-se da melhor ferramenta, lembrai-vos que esta massa não é cinzenta, pensai, ao escrever, a quem fazeis assédio! Alguns vêm trazidos pelo tédio, outros comeram que nem animais, e quem me parece mais sem remédio São os que vêm de ler os jornais. Vêm por vir, como para as mascaradas, só a curiosidade os faz voar; as damas pavoneiam-se, enfeitadas, e representam sem se fazer pagar. Com que sonhais nos píncaros da poesia? Que vos alegra na casa cheia de gente? Vede os mecenas! Desta fidalguia metade é bronca, metade é indiferente. Depois da peça, este quer jogar cartas, outro, uma noite louca com uma pega. E para tal gente ides bater às portas das musas, pobres tolos? Já chega! Ouvide bem: dai mais e sempre mais, e assim o alvo não ireis errar. Procurai confundir, que contentar os homens não conseguireis…”

Este Director é a figura em abundância ainda nos dias de hoje – é aquele que conhece os defeitos da sociedade e que espera que essa sociedade se mantenha tal como está, podre e dissoluta; mas ele, o Director, chafurda alegremente entre a pocilga pois sabe que só assim continuará um porco gordo e rosa. Ele observa atentamente a restante vara, identifica-lhe os defeitos, as máculas, as nódoas, e serve aquilo que alimenta essas deformidades. É o agiota da sociedade. Ele sabe que as pessoas não possuem valores, todas elas são pusilânimes; ele sabe que as pessoas não possuem substância, todas elas são aparência; ele sabe que as pessoas não têm decência, todas elas são indecorosas; ele sabe que as pessoas não são discretas, todas elas são luxo; ele sabe que as pessoas não são conteúdo, todas elas são espalhafato; ele sabe que as pessoas não são verdadeiras, todas elas são a trivialidade. O Director conhece a essência da sociedade – é uma sociedade falsa que vive de aparências frágeis; uma sociedade que vive para agradar a outrem; uma sociedade de materialidade, de forma. São tempos de sonolência, em que os interesses despertados são pelas modas, em que os homens são entorpecidos pela sua preguiça e não pela sua curiosidade – o espírito não é vivo, ele jaz inerte. Os seus gostos resumem-se aos gostos da massa – eles, por si, são incapazes de tomar essa decisão e delegam-na nessa grande massa inerte de indivíduos. A sociedade é uma sociedade de fachada, uma sociedade com ares de indolência e de tédio – em que o exterior anula o interior. A forma com que alguém se apresenta, com que uma ideia é exposta, o valor que se exterioriza; tudo isso anula o íntimo espírito de alguém, o âmago da ideia, a compreensão dos valores. Vemos isso facilmente nos dias que correm – na Política ou na Literatura. A aridez predomina nas almas – nelas nada cresce e tudo sucumbe.
Tudo o que importa é a manifestação e a aparição. A aparição constitui, nos dias de hoje, a derradeira forma de vulgaridade. A pessoa deseja simplesmente aparecer – na revista, no jornal, na rádio, na televisão. O que importa é aparecer – falem mal de mim, mas falem. O exterior não é tomado como um ornato do interior, mas como o Bem Supremo. A sociedade tornou-se o jogral dela própria e nem disso se apercebe. Nada a move. Goethe fala no tédio, na comida. Baudelaire falava simplesmente no tédio. Shakespeare dizia o mesmo por Hamlet: “Que é um homem quando o seu principal bem e o principal emprego do seu tempo consiste em dormir e em comer?!”. A resposta é dada pelo mesmo Hamlet e é simples: “um animal, e nada mais”. A fidalguia bronca e indiferente de que fala Goethe continua nos dias de hoje bronca e indiferente, embora com outro nome – são as elites. Em Portugal, as elites são a esterilidade – elas não precisam de se mexer para serem elites; elas contam com a imobilidade do tempo.
As mulheres são o aparato trivial do luxo – não possuem magnetismo ou faísca; tudo nelas soa a postiço. O mesmo já dizia Eça sobre elas: “prender-se a uma daquelas mulheres é assistir em roda de si à queda dolorosa, e ao desvanecimento dos nossos sentimentos, das nossas ambições espirituais, das nossas ideias, das nossas criações”. O problema, porém, é que os sentimentos, as ambições espirituais, as ideias e as criações são bens de luxo; elas escasseiam – o que não escasseiam são os escravos dispostos a abdicar dos seus Ideias pelo aparato vão e ruidoso.
É assim que o poeta do Prólogo do Fausto tem o coração destroçado – ele vê mais adiante: ele vê a mesma sociedade que vê o Director, mas sonha numa sociedade transformada. Os seus sonhos dilatam-lhe o peito. As asas invisíveis arrastam-no para Céus que o comum dos homens não compreende – julgam-no inocente. Depois de conhecer os Altos Céus, a Terra é uma morada triste e lúgubre – nada existe que desperta a sua curiosidade. Imagina coisas magníficas, na sua cabeça tudo é hipérbole; a realidade é exacerbada. E é essa profunda diferença entre a realidade real e a realidade sonhada que o esmaga. São as paixões ardentes, os poentes cheios de vida aos seus olhos, o desabrochar de flores ou as folhas transformadas em coroas. Mas o que existe, na verdade, é o desgosto das paixões, os funestos poentes, flores frouxas e folhas que não são mais do que folhas. Tudo isso são sonhos. O actor cómico e o director juntam-se para o humilhar, para o fazer ver a triste realidade com os olhos bem abertos. E então o poeta refugia-se na mocidade – no cárcere dos sonhos. Nos tempos em que nada de material tendo, toda a sua alma ardia em contentamento com a sede de verdade, o gosto de ilusão, as paixões – A Felicidade.

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