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sábado, 3 de abril de 2010

Hamlet

Hamlet é apontado como a obra-prima de Shakespeare. A dúvida – “Ser ou não ser, eis a questão.” – do herói desta tragédia é representativa disso mesmo. Nesse monólogo, Shakespeare retrata a perturbação da alma, o limbo entre a decisão e a indecisão, a angústia da incerteza, o anseio do incerto – a busca da verdade e a vingança de um pai vilmente traído ou o conforto duma vida baseada numa falsidade, mas que é prolongada graças à manutenção dessa aparência. É neste jogo entre a decisão pela verdade ou a ruptura com a falsidade que se joga o Hamlet.
O Hamlet de Shakespeare é especialmente notável nesta questão – o escrúpulo da acção. O ser ou não ser correspondendo ao agir ou não agir. Traduz-se no acompanhar do percurso de Hamlet na sua movimentação para a acção e os seus trôpegos passos nesse caminho. Aqui e além, Hamlet duvida, reflecte, toma contacto com a sua consciência. Mas no final, é a acção que vence – o ser predomina sobre o não ser. As reflexões que intercedem a acção são extraordinárias e nelas podemos contemplar mais do que um Shakespeare poeta, um Shakespeare de almas – ele capta como ninguém de que forma o intimo é composto, despindo-o e expondo-o sem ocultações. A complexidade do carácter de Hamlet é, sobretudo, o que resume esta obra. Além dele, não existem seres profundamente complexos – Ofélia é um ser simples, tomando apenas maleabilidade de alma, quando experimenta a loucura após saber da morte de seu pai, Polónio.
A reflexão de Hamlet é ainda, impressionantemente, actual. Aquela dúvida depara-se-nos no quotidiano e acompanha-nos ao longo da nossa existência. Quantas vezes somos nós impelidos para a acção por certas resoluções, mas por um ou outro motivo, sonegámos essa decisão, pensando nas suas imprecações? Resistir às adversidades que o destino nos lança, lutando contra elas; ou ser fraco e admiti-las, sem reserva, como parte integrante do decurso normal da vida, conformando-nos, preferindo uma vida de aparências frouxas mas duradoura, em vez de uma vida de verdade, mas curta no tempo? “Morrer ou dormir?” Afrontar os desígnios do Tempo, reagir às vergastadas do Amor, às fragilidades, humanidades e sensibilidades dos Sentimentos? Ou suportar todas as agruras para viver sob uma paz aparente e dormente, mas viver afinal? Hamlet toma a sua decisão – a Morte. Mas ele não a receia. Shakespeare dota Hamlet de todos os instintos e minuciosidades humanas. Mas ele possui uma característica que muitos não possuem – aliada à sua reflexão, existe uma inexorável resolução.
“Ser verdadeiramente grande não consiste em comovermo-nos apenas por uma grande causa, mas em encontrarmos grandeza no objecto do valor duma palheira quando a honra nisso está empenhada.” Mas Hamlet partilha esta resolução com o remorso duma consciência que o tortura, que o esmaga, que o apoquenta e que lhe chama a atenção para a consequência dos seus actos, e não apenas aqueles que irão directamente cair sobre ele, mas também sobre os outros – Ofélia e Gertrudes. O Príncipe sabe que seu pai foi assassinado cobardemente pelo seu próprio tio que lhe vilipendiou e usurpou o trono fruto desse abominável crime; sabe que sua Mãe foi prostituída nas mãos desse Rei Tirano; mas, ainda assim, o terrível escrúpulo volta para o esmagar e assalta-lhe o pensamento pois sabe a busca da verdade lhe irá custar o amor da bela Ofélia e sabe que terá de ser implacável com Gertrudes. Hamlet conhece o desenlace que o seu plano irá custar – a desgraça de todos os que o rodeiam. E, no entanto, firme e resoluto, ele decide enfrentar a Fortuna, “pegar em armas contra um mundo de dores e acabar com elas”. Hamlet decide, portanto, ser. Neste aspecto, ele revela toda a nobreza do seu carácter – ele subleva-se contra o status quo da mentira, da falsidade, da injúria em honra da memória de seu pai. Mas quantos de nós, ao contrário de Hamlet, não somos verdadeiramente? Assaltados pelas mesmas dúvidas, pelas mesmas inquietações, pelas mesmas interrogações, pelos mesmos males de alma, renegamos a essência do ser e suportamos as pedradas da vida presente por recear um futuro diferente e ainda de nós desconhecido? Por isso, Hamlet afirma que é esta “reflexão que prolonga por tão largo tempo a vida do miserável”. É a sua inacção e não a sua acção. É o seu contentamento face ao estado de coisas, mesmo que falso e injusto, mas em que tudo é sempre o velho mesmo, a realidade constante – “os dias, sempre os mesmos, a correr”… E, de tal modo, o hábito se torna o hábito que o ser humano se torna inerte, ocioso, boçal e indiferente, pois nada procura, nada busca. “É assim que a consciência faz cobardes de nós todos”.

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